Meu
contato com o trabalho de Roberta Estrela D’Alva se deu há praticamente um ano,
quando havia chegado com grande antecedência e aguardava o início de um show no
SESC Bom Retiro. Porém, o tempo que me sobrava pareceu pouco quando fui tomado
por um evento extraordinário, pois era domingo e ele geralmente ocorre às
segundas quintas-feiras de todo mês, do Zona Autônoma da Palavra - ZAP!, que
acontecia na área central do prédio. Descobri tratar-se de um poetry slam,
um concurso de poesia com influências do Rap e do Hip-Hop trazido ao Brasil
pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (que,
além de Roberta, tem como membros o DJ Eugênio Lima, Luaa Gababini, e Claudia Schapira), em que participantes de múltiplas
proveniências que se inscrevem pouco antes do evento ocupam o palco em diversas
rodadas para declamar suas criações que são avaliadas por um júri popular. Ela não apenas comanda a competição, como
é poetisa e foi premiada com o terceiro lugar na Copa do Mundo de Slams, que aconteceu em Paris em 2012.
Embora, além da poesia, seja envolvida com a dança, a música, e até a moda, ela
se denomina atriz-MC, especialidades que lhe renderam o prêmio Shell de Melhor
Atriz em 2012 pelo espetáculo “Orfeu mestiço – Uma Hip-hópera brasileira”, a
primeira do gênero realizada no país. E que grande mestre de cerimônias! Sua
energia, junto à música negra que o DJ Eugênio Lima toca, é contagiante...
Impossível não se envolver e querer subir ao palco para poetizar as próprias
palavras ou de outrem, como é possível em todo ZAP!, na uma hora em que o
microfone é liberado, ou na competição que acontece em seguida, somente para
textos autorais. Roberta Estrela D’Alva é Mestre em Comunicação e Semiótica,
mas acredita que os verdadeiros Mestres são os da escola da vida. E certamente
ela merece tal honra pelos treze anos de trabalho que vem realizando junto ao
Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e os que ainda virão. Hoje é dia de
ZAP!, vamos lá? O evento ocorre às 20 horas na sede do grupo, que fica na rua Dr. Augusto de Miranda, 786, Pompéia. Os créditos
das imagens da artista seguem ao final da entrevista.
1.
Quais os primeiros contatos que você se lembra de ter tido com a arte como
espectador(a)?
Isso depende do que a gente considera arte, né? Eu
tive uma avó que era uma artista nata, a dona Rosa. Ela fazia cabeças de areia
na beira do mar, construía castelos, pontes. Ficar olhando aquilo, desde o
começo, aquele monte de areia que ia pacientemente tomando forma, era lindo,
era o êxtase pra uma menina pequena. E ela fazia cantando. Muitos artesãos
fazem isso, né? Trabalham cantando, “fecundando o ato criativo”, como diria o
Paul Zumthor. Tinha meu pai também, com o violão. Tocava Jorge Ben, Alceu
Valença, Roberto Carlos e a gente ficava tudo ali em volta vendo, escutando e
aprendendo. E tinha os discos também, aquela coisa não só da música, mas do
vinil, da capa que é arte também. Acho que foram esses meus primeiros contatos.
Eu também fiz ballet desde muito pequenina e lembro o
fascínio que era ver as bailarinas mais velhas ensaiando, as que dançavam com
bailarinos principalmente porque elas voavam. E teve o “Thriller” também... em
84 eu tinha 5 anos e lembro nitidamente do impacto daquilo, daquela música,
daquela dança, do videoclipe. Aquela força que o Michael representava e trazia
é uma memória muito forte.
2. Qual a sua formação?
Embora eu também faça trabalhos com música, dança e
poesia, hoje eu digo que sou atriz–MC quanto tenho que preencher fichas por aí.
(risos) Uma mistura de porta voz do teatro com porta voz do hip-hop. Acho que tem duas linhas aí pra falar de
formação. Na da formação “acadêmica” fiz escola de artes cênicas e tenho
bacharelado em interpretação pela Escola de Comunicações e Artes da USP, e
recentemente voltei pra “acadimia”, defendi um mestrado na Comunicação e
Semiótica da PUC. Mas acho meio engraçado esse negócio de “mestre”. Mestre pra
mim é tipo o Mestre Irineu, a Tiche Vianna, meu pai que deu a volta ao mundo
com 62 anos nas costas... umas pessoas que tem mais horas-palco, horas-voo, sabe?
A outra linha é a das coisas que se aprendem na rua mesmo, sozinho, no auto
didatismo, na transmissão oral de um pra outro,
na “school of hard knocks”, a ginga, o hip-hop. E não só isso, tem uma rede de
conhecimentos estéticos, musicais, filosóficos que só a rua dá. É a “malícia do
selviço” como dizia o seu Manoel, um pedreiro que trabalhou aqui em casa.
(risos) Pouca gente sabe, mas quando eu tinha uns 18 anos eu trabalhei de go-go
dancer. A gente era dançarina mesmo, não era stripper, dançava de roupa e tudo
mais. Tinha mesmo que saber dançar bem e aguentar dançar até duas horas
seguidas sem parar. Era a chegada forte do techno nos clubs em
São Paulo, aquela cena clubber no B.A.S.E, no Floresta, no Tango Tango –
e a gente dançava pra animar a pista. Eu cheguei a dançar em festas em Goiânia
pra 4000 pessoas, lá no alto de um praticável. Foi uma experiência muito forte
essa de trabalhar na night, lidar com essa exposição, tendo que lidar
com as coisas que acontecem nesses ambientes. Isso dá um jogo de cintura e um
“requebra” que eu nem te conto... (risos)
3.
Quando e como lhe ocorreu ser artista? Houve um momento no qual esta foi uma intenção
clara ou foi algo que aconteceu?
Eu sempre quis isso. Eu sempre tive uma necessidade
de me expressar cantando, dançando, fazendo cena, me jogando e me estatelando no
chão fazendo drama desde pequena. Essa intensidade chegava ser insuportável,
pra mim e pros outros, coitada da minha mãe! (risos) O teatro é um alívio pra
gente que é assim. Essa possibilidade de adentrar os portais da emoção, da
representação com um fim definido. Acho que você para de “atuar” na vida e joga
toda essa necessidade de expressão, essa angústia, essa alegria, essa
sensualidade no palco, a serviço da cena. A arte é realmente uma bênção pra
pessoas hiperexpressivas.
4. Você pode nos contar um pouco da sua carreira?
Eu comecei na escola e tive a sorte de ter um
professor muito legal na época, que se chama Jaime Celiberto, um cara que me
apresentou Brecht, música clássica, que achava realmente que o ator tinha que
em primeiro lugar exercitar a inteligência, ser informado, ler. Foi uma sorte.
Nessa época também eu escrevia na escola. Tinha um jornal e eu era uma das
editoras, escrevi peças, músicas, tudo ali, do tamanho de uma menina de 11, 12
anos, mas tudo muito importante pra minha formação. Eu fazia colegial normal e
junto um curso técnico de magistério. Queria ser professora. E é engraçado que
de alguma maneira eu sou hoje porque vira e mexe eu tô dando aula de alguma
coisa. Daí eu entrei na USP e fiz a escola de artes cênicas. Tenho grandes
amigos dessa época até hoje. Foi o que mais valeu a pena. Isso, e ter
trabalhado com a Tiche Vianna, que além de ter ensinado a Commedia del Arte,
foi uma pessoa muito importante porque nos ensinou sobre a função social do
ator, dessa profissão. Daí eu saí da USP e fiquei meio desiludida porque eu
olhava as companhias e não sentia vontade de trabalhar em nenhuma delas. Não
que elas fossem me chamar, mas não tinha nenhum tipo de teatro com o qual eu me
identificasse. Até que a Luaa Gababini, com quem eu fazia umas performances num
bar pra ganhar um troco, me disse um dia que estava num trabalho incrível com a
Claudia Schapira, o DJ Eugênio Lima, e um grafiteiro, que era o Julio Dojcsar, no
qual se misturava teatro com hip-hop... E eu “Quê?!? Teatro com hip-hop?!? Eu
quero agora!”. Eu estava muito envolvida com a cultura hip-hop por conta do
espetáculo que tinha feito com a Tiche Vianna na USP, tava frequentando a
“noite black”, ouvindo rap pra caramba, era um sonho aquilo. Daí uma semana
depois eles precisaram de uma atriz e eu fui lá fazer um “teste”. Isso foi no
ano 2000 e desde então há 13 anos o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos que é a
minha companhia vem desenvolvendo a linguagem que a gente chama “teatro-hip-hop”.
Disso daí foram surgindo os “braços” e fui me interessando por outras coisas também,
como é o caso dos poetry slams,
batalhas de poesia falada que acontecem no mundo inteiro e que chegaram no
Brasil pelas nossas mãos.
5. Quais artistas lhe
influenciaram?
Vixe, muita coisa a gente vai comendo, sampleando
pelo caminho, né? O Michael (Jackson) é um que não tem quem tenha vivido nos
anos 80 e não tenha sido influenciado por ele. O Jorge Ben por causa do meu pai
tocando. O Caetano. Teve uma época que eu e minha irmã ouvíamos muito reggae,
Bob Marley, Ziggy, Alpha Blondie, UB40, Pato Banton... Teve um negócio na
escola que foi divisor de águas pra mim – o Macunaíma, do Mario de Andrade,
aquele jeito de escrever, aquele ritmo, foi uma influência muito positiva pro
meu jeito de ver as coisas. Teve o mesmo impacto de quando mais velha li o
Guimarães, o Grande Sertão! Foi uma época em que isso veio, junto com o Be Bop
do Charlie Parker e os textos dos beatniks, o Jack Kerouak... Isso
rachou o coco! Ah... Racionais MCs, né... Isso daí é uma ciência, uma paulada
na cabeça a primeira vez que você escuta, e as outras também. (risos) O Mano
Brown é ídolo máximo. Quem é fã é fã apaixonado. Acho que ele também se
enquadra na categoria de mestre que eu falei na outra pergunta. O personagem
mais marcante que eu fiz na minha vida, o príncipe Segismundo da Vida é Sonho,
era inspirado nele. Racionais é influência 100%, depois deles tudo mudou. Pô,
também o Spike Lee, o Kurosawa, o Nabokov, o Brecht, Shakespeare, são tantos...
Dos mais de agora, tem o Saul Williams que é um cara que vem dessa cultura dos slams, a Fiona Apple que é uma cantora
que que escutei muito... Ceumar, Red Hot Chilli Peppers! Escutei muuuiiiito
também. E as coisas mais ligadas ao Hip-Hop, rap nacional
e internacional dos anos 90, Arrested Development, rock, e as coisas mais
pop Madonna, George Michael, toda a cena nacional do 80’s Legião, Ultraje a
rigor...
6. Quando passou a se considerar profissional?
Acho que quando comecei a viver do meu trabalho.
Quando começamos a ter um espaço, a
pesquisar periodicamente , a fazer espetáculos pelo Brasil e pelo mundo. Nós fizemos
uma turnê de dois meses com o “Acordei que sonhava” pelo sul e nordeste do país.
Isso daí dá uma força sem igual pra um ator, pra um artista. Depois mais um mês
na Espanha. Você ser recebido por públicos diferentes do que está acostumada te
faz crescer muito também nessa profissão. Te faz ter que se reinventar. É
maravilhoso.
7. Qual era a ideia que
você tinha da profissão antes de exercê-la?
No começo, quando eu era muito jovem, acho que tinha
um deslumbre com a coisa da televisão. É muito forte essa cultura da novela no
Brasil. Então tem um certo fetiche com isso, a novela das oito e tal... Daí
teve uma fase radical depois que entrei
no Núcleo Bartolomeu. Teve até uma fase “televisão- nunca-nem-pensar”. Hoje já há
equilibro maior nesse pensamento. Com o tempo você vai entendendo que o lance é
o que você tem pra dizer. E conta muito com quem você vai trabalhar, é toda uma
rede e os motivos pelos quais você faz isso ou aquilo são tão diversos, tão
ligados ao momento pelo qual passamos, as motivações são tão internas e de cada
um, que não dá pra julgar.
8. Qual é a ideia que
você tem da profissão hoje que a exerce?
Ser artista, o ofício da arte como profissão é uma
coisa muito intensa. Não que outras profissões não sejam, imagina ser médico,
parteira, fazer nascer criança, por exemplo? É uma loucura. Mas acho que tem
profissões que é aquilo: tem a hora do trabalho quando cê tá lá na “firma”, no
consultório, no salão de cabelereiro e acabou, acabou, o fim de semana não tem
nada a ver com aquilo mais. Acho que a intensidade da pesquisa na arte, da
busca incessante por referências, respostas, a observação cotidiana das
pessoas, da cidade não para nunca. Eu não sei, mas pra mim, e acho que pra
maioria dos artistas, a arte e a vida andam muito misturadas, não tem muita
separação. O que às vezes sinto que é até demais porque é bom pra cabeça dar um
tempinho também. (risos)
9. Como é o seu dia de
trabalho?
Na verdade, cada dia é um dia porque os horários são
muito loucos. Não tem como acordar às 6 da manhã se você ensaia até às 3 da
madrugada, por exemplo. Mas geralmente eu durmo tarde e acordo cedo. Muitas das
coisas que escrevo e pesquiso são durante a noite. De manhã eu acordo, faço umas saudações ao
sol, medito um pouco e quando tô bem disciplinada faço exercício de voz. Daí
vou ver email, essas paradas, e sempre é aquela demanda sem fim porque a gente
ainda cuida de muitas coisas que não é só da área da cena, mas demandas
financeiras da companhia, escreve projetos, corre atrás de grana. E vou pra
sede do Núcleo, ou ensaiar ou fazer reunião. Mano, como a gente faz reunião
nessa vida! (risos) E aí tem os livros pra ler, as coisas pra pesquisar, o ZAP!
pra produzir e apresentar, as viagens de trabalho, os convites pra participar
de outros projetos, gravações, entrevistas... Enfim, é tudo muito dinâmico.
10. Seu trabalho foi
beneficiado com a internet e as redes sociais? Como?
Ah sim... Ele consegue chegar em muito mais pessoas.
Alguma conexões que fiz, só foram possíveis por conta da rede. Por exemplo, há
um tempo atrás o Emicida me chamou pra abrir o show de lançamento do disco dele
por conta de ter visto no twitter um vídeo da minha participação na Copa do
Mundo de Slam, em Paris. E muita gente que nem sabia quem eu era teve acesso ao
meu trabalho, e ao trabalho do Núcleo pelas redes sociais também.
11. É possível pagar as
contas tendo a arte como ofício? Como você faz?
Oscila muito. Isso é um ponto crítico. Até então deu
pra viver, no Bartolomeu e nos trabalhos que faço independentes, com épocas
melhores outras piores. Dá pra viver, mas a instabilidade é um negócio que
desgasta muito, principalmente quando se tem um espaço e funcionários no final
do mês, como é o nosso caso. Esse é um assunto que esse ano tem estado direto
na pauta do Bartolomeu: como sair da “sobrevivência” e do risco e conseguir uma
mínima estabilidade digna pra podermos criar e viver em paz e prosperidade.
12. Como você acredita
que será o futuro da sua profissão?
Nossa! Eu espero realmente que eu esteja conseguindo
realizar os projetos, tanto os do Núcleo Bartolomeu, quanto os meus pessoais .
Eu tenho vários na gaveta, um monte de ideias, vontades. Mas falta tempo pra
realizar. Esse é um lance que eu tenho estado mais atenta, como atuo em muitas
áreas, teatro, música, hip-hop, a escrita, educação, o slam, há que se prestar
atenção no que é prioridade no momento pra não se perder. E ver também o que o
momento está pedindo, pois as coisas fluem muito melhor quando são mais
orgânicas, quando estão sincronizadas com o que o momento está pedindo historicamente
e pessoalmente. Tenho vontade de trabalhar com certos artistas que admiro
também. Espero conseguir realizar esses sonhos muito em breve!
13. Fale sobre o que você
gostaria do seu trabalho, mas nunca lhe perguntam.
Olha, de fato eu sempre dou um jeito de
falar o que eu quero sobre o meu trabalho. (risos) Acho que gostaria de
falar que sou muito feliz por ter a sorte de poder utilizar
meus dons tão plenamente na arte e também nessa linguagem
que é o teatro hip-hop. Esse foi um lance que criamos e
tem me aberto muitas oportunidades em várias áreas relacionadas e que, além do
teatro, me traz a sorte de trabalhar diretamente com a cultura hip hop,
uma das paixões da minha vida!
Créditos das imagens utilizadas
no mural (em sentido horário):
Imagem 01 - Marcio Scavone
Imagem 02 - Divulgação
Imagem 03 – Manu Costa
Imagem 04 - Tatiana Lohmman
Imagem 05 - Tathy Yazigi
Imagem 06 - Peetsa
Imagem 07 - Tathy Yazigi
Imagem 08 - Serguei
Imagem 09 - Aquiles
Imagem 10 - Fernando Mume
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