sexta-feira, 22 de março de 2013

Entrevista com Carlos Rennó


Dizer que o Napster foi inventado em 1999 e que ele, junto à Internet, foi responsável por uma revolução na forma de se consumir música não parece mais que um dado histórico hoje em dia, mas trata-se de uma mudança fundamental que teve impactos em toda a cadeia produtiva da indústria do entretenimento, assim como nas formas de promoção e exibição dos seus bens. Contudo, apesar das alterações substanciais em todos os desdobramentos desta grande indústria, nenhuma parece ter sido tão inteiramente atravessada por elas como a da música. Por exemplo, muitos mais discos passaram a ser produzidos e distribuídos para serem baixados ou escutados em programas de compartilhamento ou plataformas virtuais, o que promove maior acesso a obras que não teriam espaço nas gravadoras chamadas majors – inclua nisso todos os gêneros que não sejam altamente populares no momento da feitura dos trabalhos em questão, independente de sua qualidade, e todos os artistas que jamais teriam lugar ao sol entre os eleitos por elas a serem transformados em grandes estrelas. Embora o lucro dessas muiltinacionais continue altíssimo, a venda de discos em suporte físico diminuiu grandemente. Mesmo com o crescimento ano a ano dos números de sua aquisição mediante pagamento em suporte virtual, ela sofre a concorrência do compartilhamento não autorizado a custo zero. Apesar da queda nas vendas, tudo leva a crer que o trabalho dos artistas provenientes da grande indústria também passou a ter um alcance ainda maior e mais rápido com estas possibilidades trazidas pelo desenvolvimento tecnológico. Com a ideia da irreprodutibilidade da performance ao vivo, o preço do ingresso para shows aumentou, o que constitui sua renda junto à venda de produtos relacionados ao seu nome/marca, assim como a sua participação em campanhas publicitárias etc., de certa forma compensando a diminuição nos ganhos com seu direito sobre as obras que produz. Contudo, para os profissionais que se dedicam exclusivamente à feitura de canções, especialmente os letristas, que podem não executar outras atividades diretamente relacionadas ao seu ofício, portanto, que têm uma grande parte de sua remuneração constituída pelos ganhos em direito autoral, as mudanças em pauta colocam dúvida sobre o futuro de seu trabalho. No Brasil, também contribui a isso o repasse ineficiente da verba recolhida pela execução de músicas pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), investigado em 2011 por suspeita de fraudes nos pagamentos dos direitos dos autores, e condenado esta semana por formação de cartel e abuso da posição dominante, junto a seis entidades brasileiras que deveriam defender estes direitos. A entrevista com o letrista Carlos Rennó não poderia ser publicada em momento mais pertinente para a reflexão sobre a sua profissão e a exequibilidade de elegê-la como tal diante da atual situação em que as indústrias da música e do disco se encontram. Para celebrar a obra deste grande poeta da música brasileira, em parceria com os artistas visuais Marcela Gil e Bruno Rubet, o Cultura Artfício tem a honra de apresentar em seu mural uma série de cinco lambe lambes com trechos de letras feitas pelo compositor, que foram criados especialmente para a ocasião. Vamos espalhar poesia vida afora! Eis aqui Carlos Rennó. As transcrições dos trechos das músicas escritas pelo artista que foram utilizados nos lambe lambes seguem ao fim da entrevista, junto aos seus créditos. O retrato de Carlos Rennó foi feito por Oleno Netto.

1. Quais os primeiros contatos que você se lembra de ter tido com a arte como espectador(a)?

Nos primeiros anos de vida, ouvindo a minha mãe cantar. Ela cantava artistas como Nelson Gonçalves e Dalva de Oliveira, cantores dos anos 40 e 50 no Brasil. A produção deles não me influenciou conscientemente, mas a de cantores contemporâneos a eles e até anteriores, surgidos nos anos 30, viria a me influenciar.

2. Qual a sua formação?

A minha educação formal é marcada por um curso superior de jornalismo, mas o principal conhecimento que eu tenho é autodidata. Ele é constituído basicamente por leitura de livros e audição de música, assim como dos shows que eu vi... A potencialidade artística independe da formação acadêmica.

3. Quando e como lhe ocorreu ser artista? Houve um momento no qual esta foi uma intenção clara ou foi algo que aconteceu?

Sim. Alguns artistas foram muito importantes para eu decidir fazer letra de música, que é o que eu faço. Para eu me decidir a ser compositor. Primeiramente uma cantora, pois tinha que ter uma voz para que isso acontecesse, que é a Tetê Espíndola. Conhecê-la me fez querer escrever letra de música. Até então eu tinha uma grande paixão pela canção, que advinha dos cinco anos de idade, mas não havia a decisão deliberada de compô-las. Eu tinha, na verdade, a ambição de ser poeta de livros, já vinha escrevendo alguns versos e tal. Ainda na adolescência, com uns 18 anos, eu vim a conhecer a Tetê. Eu já morava em Campo Grande, no Mato Grosso, com minha família e ao vê-la fazer vocalizes eu imediatamente decidi ser letrista, conjugar a ambição de fazer poesia com a minha paixão pela canção. Nunca sofri do problema de escolher uma profissão. Eu precisei conhecer outros artistas para decidir me tornar um. Sozinho, talvez eu chegasse neste caminho por exclusão, pois não haveria como fazer outra coisa. Mas foi preciso um grupo de artistas, no caso a família Espíndola, para que eu me decidisse reagir de forma positiva àquela sugestão que o acaso da vida me fez.

4. Você pode nos contar um pouco da sua carreira?

Tentando resumir a minha trajetória em poucas palavras, eu comecei a compor com a Tetê e o grupo da família Espíndola, Tetê e o Lírio Selvagem, e em seguida aumentei as colaborações em canções com o Arrigo Barnabé. Isto se deu dentro de um grupo de artistas que se movimentavam aqui por São Paulo, cujos trabalhos receberam o nome de Vanguarda Paulistana. Passados alguns anos eu fui ampliando o leque de parcerias e comecei a me dedicar ao trabalho de versões, ao trabalho de recriar canções escritas originalmente em outras línguas, principalmente em inglês, de músicas que viraram standards da própria canção mundial. Um trabalho que ganhou vida própria, se encorpou, resultando em livro e em discos com a participação de um grande elenco da música brasileira. Também desenvolvi e solidifiquei algumas novas parcerias de quinze anos para cá, principalmente com o Lenine, que é a mais regular delas, mas também surgiram outros parceiros como o Chico César, o Pedro Luís, e mais recentemente o Paulinho Moska. Há também artistas mais novos. Esses dias compus com o Kiko Dinucci, outras duas com o Leo Cavalcanti... Normalmente eu parto da música que o compositor me manda com a melodia, ou eu faço a letra e mando para o parceiro. Nunca compomos junto. Eu só escrevo sozinho e nunca é rápido. Eu trabalho e elaboro muito sobre a obra em criação.

5. Quais artistas lhe influenciaram?

Primeiramente, a Tetê e a família Espíndola na decisão por ser letrista. Teve outro artista fundamental para que eu decidisse continuar, o Caetano Veloso, que provou para mim que era possível fazer poesia na arte da canção popular. Ser poeta de poesia cantada seria maravilhoso, mas era preciso alguém que me atestasse esta possibilidade. Portanto, foi o trabalho do Caetano que me convenceu a seguir a carreira de letrista. Se não fosse ele eu não teria feito isso, embora também tenha havido outros grandes compositores letristas que me inspiraram, como o Gilberto Gil, o Chico Buarque, o Bob Dylan, o John Lennon, e tempos depois o Cole Porter. Um artista que contribuiu muito para a minha mudança de atitude diante do criar foi o Arrigo Barnabé, ao qual fui apresentado pela Tetê. Conhecê-lo me fez começar a criar de forma mais autocrítica, coisa que não havia feito até então com os Espíndola, o que mudou a minha forma de trabalhar. O contato com a obra dos poetas concretistas também, como Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos. Sobretudo o último porque é um poeta de bastante interesse e proximidade com a música, inclusive a popular.

6. Quando passou a se considerar profissional?

Quando as primeiras canções foram gravadas. Ou seja, quando elas se tornaram um produto que as mostrou concretamente; quando elas geraram algum dinheiro que determinou a consciência da profissionalização. Até então eu era um criador, um artista, mas não necessariamente em caráter profissional.

7. Qual era a ideia que você tinha da profissão antes de exercê-la?

Não é algo que tenha me ocorrido. Caso sim eu esqueci, portanto não deve ter sido muito marcante. Por outro lado, quando comecei a exercê-la passei a refletir e achar interessante a atividade de letrista. Comecei a curtir os letristas que havia, a existência de figuras como Torquato Neto, Capinan, Ronaldo Bastos e Fernando Brant me estimulou. Letristas que participavam de trabalhos que eu admirava, como o dos baianos tropicalistas, o do Clube da Esquina... Isso foi fundamental para mim, esta identificação com os poetas de música do começo e meados dos anos 70.

8. Qual é a ideia que você tem da profissão hoje que a exerce?

Eu amo o que eu faço. É uma das coisas que eu mais amo fazer na vida e não a imagino sem canção popular, sem fazer e vivenciar a canção. Ela é uma modalidade de poesia, arte que considero fundamental na vida, assim como a sua vivência. E esta é uma modalidade interessantíssima dela. Tem uma frase do James Joyce a respeito da espécie de vida que tem a palavra poética musicada: “Palavra cantada é palavra voando”. E eu adoro isso e continuo vendo a profissão como muito bonita.

9. Como é o seu dia de trabalho?

Depende. Se eu estou fazendo uma letra, eu simplesmente fico pensando na música sobre a qual eu estou colocando as palavras. Ou o contrário, eu fico pensando na letra, no ritmo, na métrica de versos que eu vou passar para alguém musicar. Isso envolve horas, dias de trabalho, dependendo do projeto de canção, da extensão da letra. Isso pode levar muito tempo. Eu dedico parte do meu trabalho à feitura de letras longas, o que caracteriza uma parte do que eu já escrevi e escrevo. Naturalmente isso envolve mais tempo de criação. É como qualquer outro trabalho intelectual: senta-se à mesa e precisa-se escrever e fazer com que venham as ideias e as soluções. Ao mesmo tempo, ao lado desse aspecto transpirante do trabalho, existe também o da inspiração, pois sem ela não dá para fazer nada. Mas uma coisa influencia a outra, tendo tido uma ideia, uma inspiração, eu começo a trabalhar nela, buscando desenvolvê-la, realizá-la. Neste trabalho transpirador eu acabo tendo novas inspirações que levam a novas transpirações, por sua vez. Isso se eu estou compondo, caso não, tenho que fazer outras coisas relativas à profissão, como responder a um e-mail da minha editora, entrar em contato com ela, receber contratos, assiná-los e levar ao correio para enviá-los de volta, tratar de quanto cobrar pela liberação de uma música ou de outra, responder outros e-mails e mensagens... Também ministro cursos e aulas. Se eu não tivesse me tornado compositor, uma espécie de crítico, um jornalista da área, um estudioso, um professor, talvez eu ainda tivesse inventado de dar cursos e palestras sobre a arte da canção. Findou que acabei sendo instigado a me dedicar a isso em alguns momentos em razão do meu trabalho de compositor, que me deu mais autoridade para tratar do assunto. Não que alguém que exerça outro ofício não possa fazê-lo com autoridade, mas todos os cursos, palestras, oficinas e aulas que eu ministro são sempre dados da perspectiva do que eu sou, um letrista.

10. Seu trabalho foi beneficiado com a internet e as redes sociais? Como?

Sim, pois permitem novas formas de divulgação do trabalho, o que é maravilhoso. Por outro lado a internet trouxe problemas, sobretudo um que eu espero que tenha alguma resolução e deverá ter, que é o dos direitos autorais. Para mim que sou só autor, decididamente não tem sido bom em termos de ganhos porque o meu trabalho em grande parte passou a ser consumido gratuitamente. A gente tem razão para até pensar que ele é consumido mais do que antes porque isso ocorre gratuitamente, mas é esquisito pensar que você tem um trabalho que é consumido sem que você seja pago por isso.

11. É possível pagar as contas tendo a arte como ofício? Como você faz?

Tenho conseguido, basicamente com direitos autorais e eventualmente com os cursos e oficinas que ministro. Do que eu faço ou conheço de música popular, de canção, é que eu tenho vivido.

12. Como você acredita que será o futuro da sua profissão?

Não sei. Eu espero que não aconteça o que eu tenho temido com razão, que o trabalho de letrista só seja possível para quem é rico. Há formas de arte que exigem elaboração, trabalho, tempo. Um trabalho de criação de letra de música como o meu, entre outros, constitui-se num desses. Eu temo e tenho motivos para temer, que este ofício se restrinja a quem tenha dinheiro porque se por um lado a internet está democratizando o acesso à produção, por outro ela está trazendo essas conseqüências. Para uma minoria, é certo. Eu falo do ponto de vista de autor, muitos criadores do meu círculo percebem isso, mas também são cantores, músicos, portanto ganham de outras maneiras, o que os faz sentirem menos este problema ao qual me refiro.

13. Fale sobre o que você gostaria do seu trabalho, mas nunca lhe perguntam.

Não há nada que eu me lembre.

Créditos das músicas cujos trechos foram utilizados no mural (em sentido horário):

-“Vivo” (Lenine/Carlos Rennó) (imagem 1) 
“Precário, provisório, perecível
Falível, transitório, transitivo
Efêmero, fugaz e passageiro:
Eis aqui um vivo
Eis aqui um vivo”
Disco: “InCité” (2004)
Intérprete: Lenine

-“Fogo e gasolina” (Pedro Luís/Carlos Rennó) (imagem 2)
“Você é o fósforo, eu sou o pavio
Você é um torpedo, eu sou o navio
Você é o trem e eu sou o trilho
Eu sou o dedo e você é o meu gatilho”
Disco: "Que belo dia estranho pra se ter alegria" (2007)
Intérprete: Roberta Sá (part. Lenine)

-“Experiência” (Chico César/Carlos Rennó) (imagem 3)
“Até que ponto resistem
A lógica e a razão,
Já que nas coisas existem
Coisas que existem e não?”
Disco: “Respeitem meus cabelos brancos” (2002)
Intérprete: Chico César (part. Nina Miranda)

-“Segunda pele” (Carlos Rennó/Gustavo Ruiz) (imagem 4)
“São Paulo tá tão frio: 3 graus a sensação,
Mas o seu arrepio não é de frio não.
Sou eu na sua pele que afago com afã
Pra que seu fogo pele a sua anfitriã.”
Disco: "Segunda pele" (2012)
Intérprete: Roberta Sá

-“Te adorar” (Lokua Kanza/Carlos Rennó) (imagem 6)
“Fico a te focar;
Mergulho fundo no teu olhar.
Mesmo quando o gozo já vem,
Eu me afundo bem ali e além...”
Disco: "Hoje" (2005)
Intérprete: Gal Costa

Para conhecer mais do trabalho de Carlos Rennó, visite sua página oficial:
http://www1.uol.com.br/cancoesversoes/


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